É preciso ler Paulo Freire - Carlos Eduardo Cardozo

No centenário do patrono da educação brasileira, suas ideias continuam atuais e urgentes diante de um país dividido e com a democracia ameaçada.

Carlos Eduardo Cardozo (Cadu)*




    O educador Paulo Freire, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, com enorme reconhecimento internacional, faria, em 2021, 100 anos. Suas ideias, ainda hoje, permanecem vivas e atuaisMuitas atividades e escritos em sua homenagem têm sido organizados, alguns, inclusive, em defesa do seu legado, atacado por grupos radicais e conservadores.
            Nascido em Recife, no estado de Pernambuco, em 1921, Paulo Freire foi o caçula de um pai capitão da Polícia Militar e de uma mãe dona de casa. Formou-se na Faculdade de Direito do Recife, mas se dedicou mesmo à educação. Atuou como professor e diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (Sesi) de Pernambuco. Essas experiências antecederam o famoso projeto de Angicos, realizado em 1963 no Rio Grande do Norte, no qual Freire coordenou uma equipe que alfabetizou cerca de 300 pessoas em um curso de 40 horas. A iniciativa formou leitores, criou eleitores e ensinou aos trabalhadores seus direitos.
            O sucesso de Angicos faria com que o presidente João Goulart adotasse o método de Paulo Freire na criação do Programa Nacional de Alfabetização, que previa a instalação de 20 mil círculos de cultura pelo país. O projeto não veria sua materialidade, entretanto, pois o golpe civil-militar de primeiro de abril de 1964 marcaria sua extinção. 
            Com a ditadura no Brasil, o educador se exila respectivamente no Chile, nos Estados Unidos e na Suíça. No país sul-americano, trabalha na educação de camponeses e escreve, em 1967, seu primeiro livro, Educação como prática da liberdade. No ano seguinte, redige então sua obra mais famosa, Pedagogia do oprimido. Em 1969 desembarca nos EUA, onde é convidado para lecionar em Harvard. Um ano depois, Pedagogia do oprimido é publicado em inglês e espanhol. Sina dos tempos de então, a versão em português só chegaria aqui em 1974.
        Ainda em 1970, Paulo Freire se muda para Genebra, atuando como consultor educacional do Conselho Mundial de Igrejas. No ano seguinte funda o Instituto de Ação Cultural (Idac), por meio do qual realizaria ações em diversos países, incluindo programas de alfabetização e descolonização nas recém-libertas colônias portuguesas na África, como Guiné-Bissau, Cabo Verde e Angola.
            É com a anistia ampla, geral e irrestrita que o educador volta em 1980 para o Brasil, passando a lecionar na Unicamp e na PUC de São Paulo. Foi secretário de educação da prefeitura de São Paulo em 1989. Faleceu em 2 de maio de 1997, aos 75 anos. Em 2012 foi declarado patrono da educação brasileira.
 
Educação como processo

          Na visão de Paulo Freire, a educação é um processo que não se esgota. Seu pressuposto é que homens e mulheres são seres inacabados. Esse processo é chamado por Freire de ser mais, uma dinâmica na qual são exigidas curiosidade, pesquisa e investigação. Para que homens e mulheres caminhem na direção de ser mais, o primeiro movimento é a leitura do mundo. Só depois disso é que se passa à leitura das palavras.
        O conhecimento de sermos um país dos mais desiguais, com consequências no cotidiano de todos nós, na distribuição de renda, de conhecimento, da arte e da cultura, muitas vezes é alheio a pessoas que passaram pela escola. Por isso, Freire fala que o processo de educação é um processo de conscientização. E esse processo pode levar as pessoas a quererem participar da possível modificação do mundo.
           De acordo com Freire, portanto, é evidente que a educação não é neutra, apesar dessa constatação nem sempre ser óbvia. Os conteúdos, mesmo em áreas como as ciências exatas, não são conhecimentos em si mesmos e não são independentes de concepções políticas e condições sociais. O ato pedagógico é sempre um ato político, porque exprime sua concepção de vida, de sociedade e das relações interpessoais.
 
Educação bancária
 
        A ideia de educação bancária parte da metáfora do depósito. Nela, o conteúdo deve ser ensinado independentemente das circunstâncias. Como o próprio Paulo Freire escreve: “O educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação”. O educador se torna, portanto, mero depositante. Os educandos, depositários.
         Na educação bancária, o educando é um objeto passivo. A autoridade do conhecimento é o professor, que sabe mais eportanto, não precisa prestar atenção no estudante. Cabe ao professor definir a disciplina, o conteúdo, a avaliação e até mesmo o jeito do estudante se comportar. Para este, a função é prestar atenção no professor, a “autoridade” que sabe mais.
        A essa concepção, Paulo Freire contrapõe a convicção epistemológica de que é o diálogo que garante a aprendizagem. Para ele, ninguém ensina ninguém e ninguém aprende sozinho: as pessoas aprendem em comunhão. Tanto na escola quanto em qualquer outro espaço de atuação – sindicatos, igrejas, grupos de amigos, times de futebol – o ato educativo surge na prática concreta com o coletivo e no comunitário
 
A alfabetização
 
    O trabalho de alfabetização começava por um levantamento dos principais temas/problemas do cotidiano enfrentado pela população que iria se alfabetizar, por exemplo: temas relativos à cultura local, problemas vinculados à saúde do povo, questões relativas ao futuro do trabalho dos alfabetizandos etc. Este é o sentido primeiro da pedagogia proposta por Freire: fazer a leitura do mundo preceder a leitura da palavra. É a partir da leitura crítica do cotidiano das pessoas de uma determinada comunidade que tem início o processo de aprendizagem.
        Os temas geradores que davam início ao processo de alfabetização eram apresentados por meio de uma imagem, por exemplo, um tijolo, que servia como elemento detonador de uma discussão estimulada pelo coordenador do círculo de cultura (a sala de aula) sobre questões relativas ao trabalho em uma olaria, às condições de habitação da população, às diferenças no modo de vida produzidas pelas desigualdades sociais, e assim por diante. Os educandos procuravam ir às raízes dos problemas, superando a rotina de convivência com eles, avançando sobre as suas causas e as consequências para a sua vida.
        Feita a discussão, a palavra “tijolo” era apresentada junto com a imagem. Vinha carregada dos significados produzidos pelo debate anterior.  Posteriormente a palavra era dividida em suas sílabas: ti-jo-lo; na sequência, apresentavam-se as famílias de cada sílaba: ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-lo-lu. Cada pessoa então seria convidada a formar novas palavras com as famílias apresentadas, por exemplo: tatu, lula, lajota.
 
É preciso ler Paulo Freire
 
        Paulo Freire, que completaria 100 anos
 neste ano de 2021, pode ser considerado um dos mais influentes educadores brasileiros que via a alfabetização como potencializadora de mudanças na sociedade. Mudanças, essas, em todos os sentidos da existência humana.
        O sonho de Paulo Freire é tornar a educação capaz de fazer as pessoas desejarem se juntar àqueles que pensam em transformar o mundo. Não para simplesmente inverter posições e transformar dominados em dominadores. Nada mais longe da concepção de Freire, como sua célebre frase revela: “Se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”.
      Seu projeto estava ao lado dos oprimidos, por isso sua pedagogia incomoda os poderosos, os opressores, as elites fechadas ao diálogo. Proclamava valores éticos, estéticos e políticos que tinham por base uma profunda crença na capacidade do ser humano de se educar e amar para poder participar da construção de um mundo melhor, mais justo e respeitador da natureza.
        A educação libertadora de Paulo Feire é humanista e dialogista. Esses são critérios da democracia e da cidadania. 
        Seu legado é incomensurável. Por isso, é preciso ler Paulo Freire!

* Carlos Eduardo Cardozo é graduado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação. Atualmente trabalha como Gestor Educacional da Rede de Educação Filhas de Jesus e integra a Equipe diretiva do Colégio Stella Maris no Rio de Janeiro. É autor de diversos artigos e livros sobre educação, religião e o fenômeno juvenil. Email: cadunew@yahoo.com.br


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