Isto é o meu corpo


Há duas maneiras diferentes de olharmos as culturas juvenis: através das socializações que as prescrevem ou das suas expressividades (performances) cotidianas. A distinção entre estas duas perspectivas pode ser aclarada tomando a “dualidade primordial” proposta por Deleuze ao contrapor “espaço estriado” a “espaço liso”. O espaço estriado é revelador da ordem, do controle. Seus trajetos aparecem confinados às características do espaço que os determinam. Em contraste, o espaço liso abre-se ao caos, ao nomadismo, ao devir, ao performativo. É um espaço dionisíaco: de novas sensibilidades e realidades.
A idéia que ponho em discussão aqui é a seguinte: nos tradicionais estatutos de passagem da adolescência para a vida adulta os jovens adaptavam-se a formas prescritivas que tornavam rígidas as modalidades de passagem de uma a outra fase da vida. Diríamos, então, que essas transições ocorriam em espaço estriado. No entanto, entre muitos jovens, as transições encontram-se atualmente sujeitas às culturas performativas que emergem das ilhas de possibilidade em que se têm constituído os cotidianos juvenis. Isto é, as culturas juvenis são caracteristicamente performativas porque, na realidade, os jovens nem sempre se enquadram nas culturas prescritivas que a sociedade lhes impõe.
O corpo é a marca aparente dessa performatividade juvenil hoje. As “fachadas corporais” das chamadas tribos juvenis espelham jogos metonímicos. A metonímica aqui não é simples adorno estilístico, é um sinal de resistência à significação. Piercings, tatuagens e outras modas (cabelos, corpos sarados, roupas etc.) são fetichizações do corpo juvenil que facilitam o acesso a um poder de expressividade. Os investimentos na imagem corporal contribuem para a construção da identidade dos jovens, conferem-lhe uma expressão simbólica de poder, uma vez que diferenciam entre si através de atributos distintivos. Os jovens não são só possuidores de um corpo como eles próprios são um corpo, e por isso simbolizam quando vestem, quando malham ou quando colocam um brinco ou outros apetrechos.
Nesta perspectiva, o corpo serve para constituir símbolos; o corpo é um elemento altamente simbólico. Exatamente neste ponto, para a atividade simbólica que a religião usa o corpo e exprime-se de modo corporal. Deus não é, exclusivamente, uma categoria para ser pensada, mas, fundamentalmente, para ser sentida pela totalidade do nosso ser. A experiência e a reflexão teológica no cristianismo são experiência e reflexão teológica sobre um Deus encarnado. Aqui, o próprio Deus toma um corpo em um corpo: o corpo de Maria.
O corpo está no centro da revelação cristã, no momento em que se trata de algo que foi assumido pelo próprio Deus. A encarnação do Verbo, que se torna corpo humano e habita entre nós (Jo 1, 18), embora seja vista sobre a ótica da humilhação (kénosis) de acordo com a carta de Paulo à Filipenses (Fl 2, 5-11), por outro lado, eleva e engrandece a corporeidade humana, uma vez que a divindade a abraça por dentro.
“Eu sou o meu corpo” afirma Merleau-Ponty. Esta máxima nos remete à reflexão inicial: jovens em um mundo onde o corpo é a expressão fundamental do seu estar neste mundo. É impossível pensar uma experiência profunda de Deus a maneira juvenil que não perpasse o corpo. A corporeidade juvenil é vínculo importante para com a transcendência conectando, assim, a criatura – jovem – ao seu Criador, em uma via corpórea existencial. Portanto, a experiência de Deus, na vivência da religião, ganhará outra nuance, porque “tocará” sua carne, terá significado profundo numa vivência e, diria, numa mística juvenil. Muitos poderão dizer: “impossível fazer experiência de Deus em corpos plásticos, como o dos jovens...” mas, a dinamicidade oferecida pelo Deus-encarnado agrega os sujeitos em sua inteireza, e não em partes. Os jovens, assim, movem-se com a totalidade do ser em direção a Deus. Só é preciso abrir a porta e mostrar o caminho: “isto é o meu corpo.”

Comentários

Airton disse…
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Jakeline Lira disse…
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Jakeline Lira disse…
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