Tropa de Elite ou Tropa da Elite?


O sucesso e a reação do público ao filme “Tropa de Elite” obriga a uma reflexão. Por um lado, os abusos policiais também manifestam a apropriação do público pelo privado e por isso tem muito a ver com os casos de corrupção e de corporativismo no Legislativo, no Judiciário e no Executivo. Por outro lado, ao veicular a idéia de uma “guerra” dos bons contra os maus elementos da sociedade, ele desempenha uma função socialmente perversa. Vejamos esses dois aspectos.
Para que uma classe média alta (com renda mensal líquida superior a R$ 7.600) e alta mesmo, possam consumir em segurança (inclusive suas drogas preferidas), é necessário contar com uma força policial o quanto possível não corrupta, mas apta a usar a violência para a repressão. É o papel que desempenhava o capataz na fazenda, ou o “capitão de mato” que caçava escravos fugidos. Eles têm que ser leais (“homens de honra”) e ferozes (“homens de coragem”). Só assim conseguem garantir a ordem social herdada dos tempos coloniais e que ainda hoje serve de paradigma para o Brasil: as normas e leis para a casa grande não se aplicam para a senzala que deve conformar-se em obedecer aos “de cima”.
A corrupção e o corporativismo decorrem de que a visão do Estado e da coisa pública hegemônica nunca chegou a ser aquela democrática e republicana. Episódios como o que envolveu o senador Renan Calheiros ajuda a classe média moralista a aceitar a tortura policial sem maiores dores de consciência, porque, "como é sabido, as instituições não funcionam".
Das heranças coloniais ibéricas mais profundas que herdamos, uma é esta, de conjugarmos autoritarismo e anarquia individualista: a ordem se impõe pela força, mas a lei não me obriga. Evidentemente, autoritarismo e anarquia em favor da casa grande. A violência é dirigida para a senzala que ousa se revoltar contra sua situação, mas não pode atingir a casa grande nem prejudicar as liberdades individuais de seus moradores.
O discurso policial, reproduzido com perfeição no filme em questão e repetido inúmeras vezes por autoridades responsáveis pela segurança pública, é que se trata de uma guerra. Retoma-se o conceito da Doutrina de Segurança Nacional, que também falava de guerra para se referir aos movimentos políticos que ela queria reprimir. Ora, só se pode falar propriamente em guerra quando dois lados militarmente organizados lutam para impor seu controle político sobre um determinado território. Não é isso que ocorre nos morros cariocas. Terminada uma operação policial, o território volta ao statu quo ante e novos jovens são recrutados para ocuparem o lugar dos mortos. A polícia alega que suas operações têm por finalidade desarmar bandidos, apreender drogas ilícitas e desbaratar quadrilhas. Mas, se os morros não produzem drogas nem armas, não seria mais lógico evitar que elas entrassem? Os custos humano e econômico de um combate direto ao fornecedor de armas e ao grande traficante de drogas seriam menores do que essas operações militares cujo alvo são entrepostos destinados ao varejo e os consumidores finais de armas. Isso requer, é claro, um sistema de inteligência bem desenvolvido para a interpretação das informações, mas não é fora de propósito – basta lembrar os avanços recentes da Polícia Federal, cada vez mais investigativa.
O fato da polícia insistir na repressão militar, e não no trabalho de inteligência, levou o cientista social Paulo Sérgio Pinheiro a formular, há mais de dez anos, uma hipótese instigante: a função das operações de policiais militares em favelas e bairros de periferia seria a de manter suas populações em permanente defensiva. Neste sentido, ele falava de um “terrorismo preventivo” pois, como se sabe, o efeito desejado pelo terrorista é que seu adversário seja paralisado pelo temor de que lhe suceda coisas piores. Assim o terror policial-militar viria a impedir nas periferias urbanas, movimentos de protesto social e político capazes de ameaçarem a ordem estabelecida.

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